quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Peace & Noise: Patti Smith no Brasil e minha nostalgia atualizada

Ouvir Patti Smith novamente aos 35 anos me passa um sentimento de familiaridade muito forte. Apesar de nunca ter sido fã de poesia, essa poetisa ganhou minha atenção aos 15 anos de idade quando ouvi (vi) uma parceria dela com o REM ("E-bow the Letter", clip pois eu era grande assistidora da MTV no idos de 1990/2000).

Comecei a dar uma pesquisada, mas até então ela era mais nome para mim do que alguém que eu realmente conhecia. Até que a internet se tornou algo maravilhoso. Sim, pra mim que passou por essa transição global, a internet é algo maravilhoso que ampliou nosso acesso às informações do mundo e nos fez conhecer e aprofundar nosso conhecimento pelo poder do compartilhamento. 

Durante a minha graduação, me deparei no PC da minha casa e no arquivo de música que compartilhava com meu irmão os álbuns Peace & Noise e Horses (Legacy Edition) dela. Inicialmente, me vi inclinada a ouvir quase que diariamente "Gloria" e "Redondo Beach" praticamente todos os dias. "1959" às vezes. Engraçado como a gente vai modificando nossas referências e gostos artísticos durante nossa vida (e tá tudo bem, tá?!).

A atenção que havia dado a ela aos 15 anos tomou uma parte do meu coração aos 27 anos (talvez, não sei precisar). Eu carregava comigo esses dois álbuns dentro de um MP3 player junto de outras soltas ("People have the power", "Because the night", Frederick"...), ao lado de vários outros e completamente diferentes artistas (como diz meu companheiro, ouvindo minha lista de favoritos no Spotify, nunca se sabe o que vai surgir e nada se conecta... e é isso mesmo).

E aí veio o 2013 que consumiu boa parte do meu tempo por conta da minha militância no PSTU. E aí eu estava exercendo minha solteirice de forma plena e experimentando (inclusive musicalmente).  E aí eu conheci meu companheiro. E aí eu fiquei grávida!

(2012 e 2013 são memoráveis pra mim. Parece que vivi  em 2 anos o que os 7 anos de relacionamento abusivo não me deixou viver: felicidade.)

E aí eu sem querer deixei a Patti Smith de lado. Até esse final de semana passado em que eu vi que ela vai tocar em SP. Isso acendeu uma chama em mim (como queria ir vê-la, mas não será possível). Peguei meu amigo Spotify e entrei no perfil dela. Abri e havia lá meus companheiros Peace & Noise e Horses (obviamente que há todos os álbuns que foram devidamente engolidos e apreciados e chorados e... tudo). Vivi em um final de semana os anos que sem querer me afastei da Patti Smith.

No primeiro riff de "Waiting Underground" eu já fui levada "If you believe all your hope is gone down the drain of your humankind..." . Sorriso de orelha a orelha. Tão, mas tão, mas TÃO familiar. Sei nem explicar. Acho que a sensação foi de acolhimento... Sei lá! Como eu senti saudades, Patti!

Enfim, vão lá dançar descalços nos shows que ela fará! Eu vou tentar aqui alguma plataforma pra acompanhar ao vivo (será que tem?). Ou só vou colocar a música dela alto mesmo e incomodar os vizinhos, dançado comigo mesma ou com meu filho ("coloca a música rock, mamãe!" *tocando uma guitarra imaginária e rebolando*)... "I'm dancing barefoot!"

terça-feira, 3 de setembro de 2019

O maior inimigo de uma mulher? A falta de tempo para si mesma Por Brigid Schulte

alguns meses atrás, enquanto eu lutava para conseguir tempo nos meus dias turbulentos para escrever, uma colega sugeriu que eu lesse um livro sobre os rituais diários de grandes artistas. Mas, ao invés de me oferecer a inspiração que eu esperava, o que mais me chamou a atenção sobre esses gênios criativos – na maioria homens – não foram seus horários e rotinas diárias, mas sim das mulheres em suas vidas.
Suas esposas os protegeram de interrupções; suas empregadas domésticas traziam seus cafés em horários estranhos; suas babás cuidava para que suas crianças não os atrapalhassem. Martha Freud não só arrumava as roupas de Sigmund toda manhã, como até colocava a pasta de dente em sua escova. A empregada de Marcel Proust, Celeste, não só trazia seu café diário, croissants, jornal e correspondência, mas também se prontificava a conversar com ele sempre que ele quisesse, muitas vezes por horas. Algumas mulheres são emocionadas somente pelo o que elas tiveram que aguentar, como a esposa de Karl Marx – sem nome no livro – que viveu na miséria com 3 de seus 6 filhos enquanto ele passava seus dias escrevendo no Museu Britânico.
Gustav Mahler casou-se com uma promissora compositora chamada Alma, depois a proibiu de compor, alegando que somente poderia haver um na família. Logo, era esperado que ela mantivesse a casa em total silêncio para ele. Depois de sua nadada vespertina, ele chamava Alma para acompanhá-lo, pisadas silenciosas para que enquanto ele compunha mentalmente. Ela se sentava num galho ou na grama, sem ousar perturbá-lo. “Existe uma batalha acontecendo dentro de mim!” Alma escreveu em seu diário. “E uma espera miserável por alguém que pense EM MIM, que me ajude a ME encontrar! Eu fui rebaixada a uma empregada!”
Diferentemente dos artistas homens, que se movem pela vida como se o tempo para si mesmo sem limites fosse um direito de nascimento, os dias e trajetórias de vida de um punhado de artistas mulheres destacados nos livros eram frequentemente limitados pela expectativa e deveres da casa e do cuidado. George Sand sempre trabalhou tarde da noite, uma prática que começou quando ela era adolescente e precisava cuidar de sua avó. No começo, os dias de escrita de Francine Prose eram definidos pelo horário de ida e volta do ônibus escolar de suas crianças. Alice Munro escreveu nas “lascas” de tempo que achava entre o trabalho doméstico e o cuidado com as crianças. E Maya Angelou fugiu dos deveres da casa, deixando completamente ao se hospedar num quarto de hotel barato para pensar, ler e escrever.
Até mesmo Anthony Trollope, que famosamente escrevia 2,000 palavras antes das 8h da manhã todos os dias, provavelmente aprendeu com sua mãe tal hábito, quem começou a escrever aos 53 anos de idade para auxiliar seu marido doente e seus 6 filhos. Ela levantava às 4h da manhã e terminava seu trabalho a tempo de servir o café da manhã à família.
Penso em todos os livros, pinturas, música, descobertas científicas, filosofia aprendida em sala de aula – a maioria de homens. O maestro Zubin Mehta disse uma vez, “Eu simplesmente não penso que mulheres devam estar numa orquestra”, como se elas não tivessem o temperamento ou talento. (As audições às cegas acabaram com essa noção.) Penso numa entrevista com Patti Scialfa sobre como ela difícil para ela escrever música para seu álbum solo porque suas crianças a interrompiam e demandavam seu tempo de uma forma que nunca fariam com seu pai, Bruce Springsteen. E aí me atingiu: não é que as mulheres não tivessem talento para deixar suas marcas no mundo da ideia e das arets. É que elas não tinham tempo para isso.
O tempo da mulher vem sendo interrompido e fragmentado pela história, os ritmos de seus dias circunscritos por tarefas entediantes do trabalho doméstico, cuidados com a criança e familiar – mantendo os laços familiares e comunitários fortes. Se o necessário para crias são longas extensões de tempo ininterrupto e tempo de concentração, tempo para escolher o que quiser fazer, tempo que você possa controlar, isso é algo que uma mulher nunca teve o privilégio de esperar, pelo menos não sem ser apontada como uma egoísta indecorosa.
Até hoje, pelo mundo todo, com tantas mulheres na força de trabalho paga, algumas mulheres ainda passam pelo menos duas vezes mais tempo que homem fazendo trabalhos domésticos e cuidando de crianças, às vezes muito mais. Um estudo com 32 famílias em Los Angeles encontrou que o tempo ininterrupto de lazer da maioria das mães durava, mais ou menos, não mais que 10 minutos em extensão. E, mapeando a vida cotidiana de acadêmicas, a socióloga Joya Misra e seus colegas viram que o trabalho diário das professoras mulheres eram mais longos do que seus colegas homens, quando contabilizado o trabalho não pago em casa. E mais, ela viu que os homens e mulheres que estudou gastaram a mesma quantidade de tempo no trabalho pago. No entanto, o tempo de trabalho forma das mulheres também sofria interrupções e era fragmentado, picado por mais serviços, aconselhando e palestrando. Os homens passavam seus dias de trabalho em longas extensões sem interrupção durante seu tempo de reflexão, pesquisa, escrita, criação e publicação para se promoverem, fazerem seus nomes, progredir em suas carreiras e espalhar suas ideias pelo mundo.
Em sua aula de Teoria do Lazer, Thorstein Veblen escreveu que pela História as pessoas que tinham a habilidade e de escolher e controlar seu tempo eram os homens de alto status. Ele dispensou as mulheres na página dois, escrevendo que elas, junto a servos e escravos, sempre foram responsáveis pelo trabalho árduo que permite que aqueles homens de alto status pensem seus grandes pensamentos. Pesquisadoras feministas argumentaram que as mulheres frequentemente tinham, no máximo, “lazeres invisíveis” – agradáveis, porém produtivos e socialmente sancionados, atividades como costurar e cozinhar em grupo ou clube de livros. Mesmo assim, o lazer por si só, criando tempo para si mesmas, era nada mais do que um corajoso, radical e subversivo ato de resistência. Mais fácil, um pesquisador brincou, se, como o escritor, compositor, filósofo e místico Hildegard de Bingen, você se tornasse freira.
Pesquisadoras feministas também viram que muitas mulheres não sentem que merece longas extensões de tempo para si mesmas, da forma como os homens sentem. Elas sentem que precisam ganhar esse tempo. E o único jeito de conseguir é ao final de uma longa lista de afazeres: as tarefas do dia, como Melinda Gates escreve em seu novo livro, “Matando os sonhos de uma vida”. De fato, eu estive tentando conseguir o tempo para pensar e escrever esse artigo por mais de 4 meses. Todos os dias que sentei para começar, recebia algum telefonema ou e-mail emergencial de meu marido, filho ou filha; minha mãe, lidando com a estranha fronteira e burocracia sem fim de uma recém viúva; a companhia do cartão de crédito; ou um mecânico sobre uma emergência ou outra qualquer atenção imediata para evitar algum desastre.
Eu lembro de entrevistar a psicóloga Mihaly Csikszentmihalyi, famosa por identificar o estado de fluxo (flow), o pico da experiência humana quando alguém fica absorto numa tarefa significativa em que o tempo efetivamente desaparece. É o estado em que artistas e pensadores dizem ser obrigatório para criar qualquer coisa de valor. Eu perguntei para ele se a pesquisa explorava se as mulheres tinham a mesma oportunidade de chegar ao fluxo tanto quanto os homens. Ele pensou por um tempo, depois me contou a história de uma mulher que se perdeu no tempo enquanto passava as blusas do marido.
A poeta Eleanor Ross Taylor viveu sua vida na sombra do marido, o ganhador do Pulitzer de novelista, escritor de contos e professor Peter Taylor. “Durante os anos, muitas vezes eu fala ao poemas ‘Vão embora, eu não tenho tempo agora’”, ela disse a um entrevistador em 1997. “Mas isso era um pouco de preguiça. Se eu realmente quisesse escrever, eu poderia. Pelo menos eu deixava a casa escovada e encerada e esse tipo de coisa”.
Eu sinto uma sensação de perda quando eu penso nos grandes, não-escritos poemas que ficaram atrás do chão encerado. E por um bom tempo, pensei que a expectativa de que os outros fossem atendidos primeiro e que os pisos fossem polidos e que era ela quem deveria mantê-los dessa maneira, era o que mantinha aquelas histórias não contadas enroladas dentro dela, comprimidas, como Maya Angelou escreve, a ponto de sofrer. Mas me pergunto se não é também que as mulheres sentem que não merecem tempo para si mesmas, ou o suficiente disso em extensões ininterruptos. Gostaria de saber se também sentimos que não merecemos contar nossas histórias não contadas, que elas podem não valer a pena ser ouvidas.
O escritor VS Naipaul afirmou que nenhuma mulher escritora era seu correspondente, que a escrita feminina era muito “sentimental”, sua visão de mundo muito “estreita” – porquê, você sabe, a vida dos homens são o padrão da experiência humana. E frequentemente penso: se uma mulher escrevesse com todo cuidado uma novela de seis volumes sobre sua própria vida teria recebido a mesma atenção e clamor internacional que o escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, autor de “Minha Luta”?
Virginia Woolf uma vez imaginou o que teria sido de Shakespeare se ele tivesse nascido mulher, ou se ele tivesse uma irmã igualmente talentosa. (Pense na prodígio musical Nannerl Mozart, cujas primeiras composições foram louvadas como “belíssimas” pelo irmão Wolfgang, mas que se perdeu, ou permaneceu enrolada por dentro, não-escrita, enquanto ela desaparecia num casamento esperado, porém sem amor).
A mulher Shakespeare, Woolf escreveu, nunca teria tido tempo ou habilidade de desenvolver sua genialidade – barrada da escola, mandada a se preocupar com o ensopado, esperado a se casar jovem e espancada caso não o fizesse. No conto de Woolf, a irmã de Shakespeare, apesar de seu grandioso dom, enlouqueceria, morta ou silenciada num chalé na floresta e taxada como bruxa.
Mas esse não era o final da história. Woolf imaginou que, no futuro, uma mulher genial nasceria. Sua habilidade floresceria – e a expectativa era de que sua voz, sua visão, era digna – dependeria inteiramente do mundo que decidíssemos criar. “Ela viria como se tivéssemos trabalhado para ela”, escreveu Woolf.
Eu não afirmo ter nenhuma genialidade. Mas às vezes, sonho que estou sentada numa sala empoeirada na cozinha do lado oposto de outra versão minha, que senta, ilimitada pelo tempo, bebendo quietamente uma xícara de chá. “Gostaria que visitasse mais vezes”, ela diria para mim. E me pergunto se aquela dor lancinante no meio da noite que, às vezes, se instala como pavor em torno do meu plexo solar pode não ser apenas porque há tão pouco tempo para contar minhas próprias histórias não contadas, mas porque temo que o que pode estar enrolado por dentro pode não valer a pena prestar atenção de qualquer forma. Talvez isso seja o que não quero encarar na sala empoeirada que sonho.
Também penso: e se nós trabalhássemos para criar um mundo para as irmãs de Shakespeare e Mozart, ou para que qualquer outra mulher realmente pudesse prosperar? O que aconteceria se nós decidíssemos que as mulheres merecessem o tempo de ir as suas salas empoeiradas e ficassem à mesa da cozinha? E se todas nós decidíssemos visitar com mais frequência, tomar uma xícara de chá com nós mesmas, ouvindo as histórias enroladas enquanto elas se desenrolam, sabendo que elas tem valor simplesmente porque são verdadeiras? Adoraria ver o que aconteceria em seguida.
Brigid Schulte é uma ganhadora do Pulitzer de jornalismo pelo  The Washington Post e The Washington Post Magazine. Ela também é uma colega da New America Foundation. Overwhelmed by Brigid Schulte foi publicado por Bloomsbury in March 2014
Esse artigo que traduzi foi publicado em 21 de julho de 2019 e está no The Guardian (https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/jul/21/woman-greatest-enemy-lack-of-time-themselves)