Há alguns meses atrás,
enquanto eu lutava para conseguir tempo nos meus dias turbulentos para
escrever, uma colega sugeriu que eu lesse um livro sobre os rituais diários de
grandes artistas. Mas, ao invés de me oferecer a inspiração que eu esperava, o
que mais me chamou a atenção sobre esses gênios criativos – na maioria homens –
não foram seus horários e rotinas diárias, mas sim das mulheres em suas vidas.
Suas esposas os protegeram de
interrupções; suas empregadas domésticas traziam seus cafés em horários
estranhos; suas babás cuidava para que suas crianças não os atrapalhassem.
Martha Freud não só arrumava as roupas de Sigmund toda manhã, como até colocava
a pasta de dente em sua escova. A empregada de Marcel Proust, Celeste, não só
trazia seu café diário, croissants, jornal e correspondência, mas também se
prontificava a conversar com ele sempre que ele quisesse, muitas vezes por
horas. Algumas mulheres são emocionadas somente pelo o que elas tiveram que
aguentar, como a esposa de Karl Marx – sem nome no livro – que viveu na miséria
com 3 de seus 6 filhos enquanto ele passava seus dias escrevendo no Museu
Britânico.
Gustav Mahler casou-se com uma
promissora compositora chamada Alma, depois a proibiu de compor, alegando que
somente poderia haver um na família. Logo, era esperado que ela mantivesse a
casa em total silêncio para ele. Depois de sua nadada vespertina, ele chamava
Alma para acompanhá-lo, pisadas silenciosas para que enquanto ele compunha
mentalmente. Ela se sentava num galho ou na grama, sem ousar perturbá-lo. “Existe
uma batalha acontecendo dentro de mim!” Alma escreveu em seu diário. “E uma
espera miserável por alguém que pense EM MIM, que me ajude a ME encontrar! Eu
fui rebaixada a uma empregada!”
Diferentemente dos artistas homens,
que se movem pela vida como se o tempo para si mesmo sem limites fosse um
direito de nascimento, os dias e trajetórias de vida de um punhado de artistas
mulheres destacados nos livros eram frequentemente limitados pela expectativa e
deveres da casa e do cuidado. George Sand sempre trabalhou tarde da noite, uma
prática que começou quando ela era adolescente e precisava cuidar de sua avó.
No começo, os dias de escrita de Francine Prose eram definidos pelo horário de
ida e volta do ônibus escolar de suas crianças. Alice Munro escreveu nas
“lascas” de tempo que achava entre o trabalho doméstico e o cuidado com as
crianças. E Maya Angelou fugiu dos deveres da casa, deixando completamente ao
se hospedar num quarto de hotel barato para pensar, ler e escrever.
Até mesmo Anthony Trollope, que
famosamente escrevia 2,000 palavras antes das 8h da manhã todos os dias,
provavelmente aprendeu com sua mãe tal hábito, quem começou a escrever aos 53
anos de idade para auxiliar seu marido doente e seus 6 filhos. Ela levantava às
4h da manhã e terminava seu trabalho a tempo de servir o café da manhã à
família.
Penso em todos os livros, pinturas,
música, descobertas científicas, filosofia aprendida em sala de aula – a
maioria de homens. O maestro Zubin Mehta disse uma vez, “Eu simplesmente não
penso que mulheres devam estar numa orquestra”, como se elas não tivessem o
temperamento ou talento. (As audições às cegas acabaram com essa noção.) Penso
numa entrevista com Patti Scialfa sobre como ela difícil para ela escrever
música para seu álbum solo porque suas crianças a interrompiam e demandavam seu
tempo de uma forma que nunca fariam com seu pai, Bruce Springsteen. E aí me
atingiu: não é que as mulheres não tivessem talento para deixar suas marcas no
mundo da ideia e das arets. É que elas não tinham tempo para isso.
O tempo da mulher vem sendo
interrompido e fragmentado pela história, os ritmos de seus dias circunscritos
por tarefas entediantes do trabalho doméstico, cuidados com a criança e
familiar – mantendo os laços familiares e comunitários fortes. Se o necessário
para crias são longas extensões de tempo ininterrupto e tempo de concentração,
tempo para escolher o que quiser fazer, tempo que você possa controlar, isso é
algo que uma mulher nunca teve o privilégio de esperar, pelo menos não sem ser
apontada como uma egoísta indecorosa.
Até hoje, pelo mundo todo, com tantas
mulheres na força de trabalho paga, algumas mulheres ainda passam pelo menos
duas vezes mais tempo que homem fazendo trabalhos domésticos e cuidando de
crianças, às vezes muito mais. Um estudo com 32 famílias em Los Angeles encontrou
que o tempo ininterrupto de lazer da maioria das mães durava, mais ou menos,
não mais que 10 minutos em extensão. E, mapeando a vida cotidiana de
acadêmicas, a socióloga Joya Misra e seus colegas viram que o trabalho diário
das professoras mulheres eram mais longos do que seus colegas homens, quando
contabilizado o trabalho não pago em casa. E mais, ela viu que os homens e
mulheres que estudou gastaram a mesma quantidade de tempo no trabalho pago. No
entanto, o tempo de trabalho forma das mulheres também sofria interrupções e
era fragmentado, picado por mais serviços, aconselhando e palestrando. Os
homens passavam seus dias de trabalho em longas extensões sem interrupção
durante seu tempo de reflexão, pesquisa, escrita, criação e publicação para se
promoverem, fazerem seus nomes, progredir em suas carreiras e espalhar suas
ideias pelo mundo.
Em sua aula de Teoria do Lazer, Thorstein Veblen escreveu
que pela História as pessoas que tinham a habilidade e de escolher e controlar
seu tempo eram os homens de alto status. Ele dispensou as mulheres na página
dois, escrevendo que elas, junto a servos e escravos, sempre foram responsáveis
pelo trabalho árduo que permite que aqueles homens de alto status pensem seus
grandes pensamentos. Pesquisadoras feministas argumentaram que as mulheres
frequentemente tinham, no máximo, “lazeres invisíveis” – agradáveis, porém
produtivos e socialmente sancionados, atividades como costurar e cozinhar em
grupo ou clube de livros. Mesmo assim, o lazer por si só, criando tempo para si
mesmas, era nada mais do que um corajoso, radical e subversivo ato de
resistência. Mais fácil, um pesquisador brincou, se, como o escritor,
compositor, filósofo e místico Hildegard de Bingen, você se tornasse freira.
Pesquisadoras feministas também viram
que muitas mulheres não sentem que merece longas extensões de tempo para si
mesmas, da forma como os homens sentem. Elas sentem que precisam ganhar esse
tempo. E o único jeito de conseguir é ao final de uma longa lista de afazeres:
as tarefas do dia, como Melinda Gates escreve em seu novo livro, “Matando os
sonhos de uma vida”. De fato, eu estive tentando conseguir o tempo para pensar
e escrever esse artigo por mais de 4 meses. Todos os dias que sentei para
começar, recebia algum telefonema ou e-mail emergencial de meu marido, filho ou
filha; minha mãe, lidando com a estranha fronteira e burocracia sem fim de uma
recém viúva; a companhia do cartão de crédito; ou um mecânico sobre uma
emergência ou outra qualquer atenção imediata para evitar algum desastre.
Eu lembro de entrevistar a psicóloga Mihaly
Csikszentmihalyi, famosa por identificar o estado de fluxo (flow), o pico da
experiência humana quando alguém fica absorto numa tarefa significativa em que
o tempo efetivamente desaparece. É o estado em que artistas e pensadores dizem
ser obrigatório para criar qualquer coisa de valor. Eu perguntei para ele se a
pesquisa explorava se as mulheres tinham a mesma oportunidade de chegar ao fluxo tanto quanto os homens. Ele pensou
por um tempo, depois me contou a história de uma mulher que se perdeu no tempo
enquanto passava as blusas do marido.
A poeta Eleanor Ross Taylor viveu sua vida
na sombra do marido, o ganhador do Pulitzer de novelista, escritor de contos e
professor Peter Taylor. “Durante os anos, muitas vezes eu fala ao poemas ‘Vão
embora, eu não tenho tempo agora’”, ela disse a um entrevistador em 1997. “Mas
isso era um pouco de preguiça. Se eu realmente quisesse escrever, eu poderia.
Pelo menos eu deixava a casa escovada e encerada e esse tipo de coisa”.
Eu sinto uma sensação de perda quando
eu penso nos grandes, não-escritos poemas que ficaram atrás do chão encerado. E
por um bom tempo, pensei que a expectativa de que os outros fossem atendidos
primeiro e que os pisos fossem polidos e que era ela quem deveria mantê-los
dessa maneira, era o que mantinha aquelas histórias não contadas enroladas
dentro dela, comprimidas, como Maya Angelou escreve, a ponto de sofrer. Mas me
pergunto se não é também que as mulheres sentem que não merecem tempo para si
mesmas, ou o suficiente disso em extensões ininterruptos. Gostaria de saber se
também sentimos que não merecemos contar nossas histórias não contadas, que
elas podem não valer a pena ser ouvidas.
O escritor VS Naipaul afirmou que
nenhuma mulher escritora era seu correspondente, que a escrita feminina era
muito “sentimental”, sua visão de mundo muito “estreita” – porquê, você sabe, a
vida dos homens são o padrão da experiência humana. E frequentemente penso: se
uma mulher escrevesse com todo cuidado uma novela de seis volumes sobre sua
própria vida teria recebido a mesma atenção e clamor internacional que o
escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, autor de “Minha Luta”?
Virginia Woolf uma vez imaginou o que
teria sido de Shakespeare se ele tivesse nascido mulher, ou se ele tivesse uma
irmã igualmente talentosa. (Pense na prodígio musical Nannerl Mozart, cujas
primeiras composições foram louvadas como “belíssimas” pelo irmão Wolfgang, mas
que se perdeu, ou permaneceu enrolada por dentro, não-escrita, enquanto ela
desaparecia num casamento esperado, porém sem amor).
A mulher Shakespeare, Woolf escreveu, nunca
teria tido tempo ou habilidade de desenvolver sua genialidade – barrada da
escola, mandada a se preocupar com o ensopado, esperado a se casar jovem e
espancada caso não o fizesse. No conto de Woolf, a irmã de Shakespeare, apesar
de seu grandioso dom, enlouqueceria, morta ou silenciada num chalé na floresta
e taxada como bruxa.
Mas esse não era o final da história. Woolf
imaginou que, no futuro, uma mulher genial nasceria. Sua habilidade floresceria
– e a expectativa era de que sua voz, sua visão, era digna – dependeria
inteiramente do mundo que decidíssemos criar. “Ela viria como se tivéssemos
trabalhado para ela”, escreveu Woolf.
Eu não afirmo ter nenhuma genialidade.
Mas às vezes, sonho que estou sentada numa sala empoeirada na cozinha do lado
oposto de outra versão minha, que senta, ilimitada pelo tempo, bebendo
quietamente uma xícara de chá. “Gostaria que visitasse mais vezes”, ela diria
para mim. E me pergunto se aquela dor lancinante no meio da noite que, às
vezes, se instala como pavor em torno do meu plexo solar pode não ser apenas
porque há tão pouco tempo para contar minhas próprias histórias não contadas,
mas porque temo que o que pode estar enrolado por dentro pode não valer a pena
prestar atenção de qualquer forma. Talvez isso seja o que não quero encarar na
sala empoeirada que sonho.
Também penso: e se nós trabalhássemos
para criar um mundo para as irmãs de Shakespeare e Mozart, ou para que qualquer
outra mulher realmente pudesse prosperar? O que aconteceria se nós decidíssemos
que as mulheres merecessem o tempo de ir as suas salas empoeiradas e ficassem à
mesa da cozinha? E se todas nós decidíssemos visitar com mais frequência, tomar
uma xícara de chá com nós mesmas, ouvindo as histórias enroladas enquanto elas
se desenrolam, sabendo que elas tem valor simplesmente porque são verdadeiras?
Adoraria ver o que aconteceria em seguida.
Brigid
Schulte é uma ganhadora do Pulitzer de jornalismo pelo The Washington Post e The Washington Post
Magazine. Ela também é uma colega da New America Foundation. Overwhelmed by Brigid Schulte foi publicado
por Bloomsbury in March 2014
Esse artigo que traduzi foi publicado em 21 de julho de 2019 e está no The Guardian (https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/jul/21/woman-greatest-enemy-lack-of-time-themselves)